Archive for maio, 2012


Estar perdida

Tem aquela velha expressão de se sentir mais perdida que cachorro em dia de mudança, né. Que eu não havia experimentado, pelo menos não até agora.

 

É o vazio deixado pela coisa que não está mais lá misturado com a inadequação de não ter mais lugar no mundo, de estar sem casa, sem pátria, sem rumo.

 

O cachorro foi deixado pra trás, no meu caso. E os donos fizeram questão de não deixar a trilha para o bichinho seguir.

 

O que tem me gerado sensações estranhas, desconhecidas e opressivas. Medo e angústia e confusão, pra começar. Distração constante, esquecimento, pensamentos dispersos, vontade de estar em casa quando estou na rua, e vontade de estar na rua quando estou em casa.

 

A mais estranha de todas: a vontade de não estar sozinha, de voltar ao passado e estar com ele, estar vivendo a minha antiga vida, só para não me sentir tão sozinha, para sentir que tenho alguém para me ouvir se houver algo a dizer no meio da noite.

 

Sabe aquela coisa de estender o braço e ter ali alguém que tu pode acordar só pra dizer, me abraça porque não consigo dormir? Então, é disso que estou falando.

 

Eu tenho uma amiga psicóloga que disse que tudo isso é muito normal de sentir, ainda passando por uma reviravolta tão grande na vida como esta minha. Mas daí, como minha amiga, ela me lembra que eu tenho que ser forte. Tenho que resistir estoicamente, tenho que me concentrar em preencher esses espaços todos que ficaram com coisas boas, e com novas atividades e amizades e coisas que me fazem bem.

 

Eu ainda não sei o que me faz bem. Quer dizer, não sei mais o que me faz bem sem também cogitar se faz bem a ele, porque é isso que a gente faz quando casa, não é, a gente abdica de pensar só em si para dividir os pensamentos e incluir o outro naquilo que faz e que quer. Eu, pelo menos, penso assim, e agi assim, desde que decidimos dividir e misturar nossas vidas, há oito anos atrás. E isso se tornou um hábito que está sendo bem difícil de abrir mão, sabe.

 

Assim como o cachorro esquecido na mudança, também fui deixada pra trás. Ele resolveu seguir com a vida dele sem mim, e se foi, sem deixar vestígio. Agora cabe a mim achar uma nova morada, um novo espaço no mundo, um novo lugar para chamar de lar. 

Nem uma lágrima

Há uns dois anos atrás, quase três, eu precisei ficar internada no hospital por alguns dias. Eu nasci com uma disfunção e precisei ser operada. Até aí, nada de mais, você vai pensar, porque pessoas são operadas e sobrevivem e seguem suas vidas normalmente. 

 

É verdade. Eu segui com a minha, sem maiores consequências. O legal foi receber a visita de vários amigos, e receber o carinho espontâneo de tanta gente que eu achava afastada demais da minha vida para se importar.

 

Uma menina que eu conheço, a quem aprendi a admirar profundamente, foi uma tarde lá me fazer companhia. A vida dela deu uma reviravolta quando ela descobriu uma doença grave, degenerativa, que a obrigou a mudar completamente sua realidade. No meio da conversa me lembro de perguntar a ela como ela se sentiu quando o médico deu o diagnóstico, e como ela tinha reagido a essa notícia tão arrasadora.

 

Ela foi bem direta: olhando a doença nos olhos, enfrentando de queixo erguido, e, acima de tudo, sem sentir pena de mim mesma.

 

Ela me contou que se fechou no quarto no primeiro dia, e chorou, chorou, chorou, até cansar. Aí levantou e sacudiu a poeira e se preparou para enfrentar todas as dificuldades que iriam aparecer. 

 

Eu não me lembrava dessa conversa até uns dias atrás, quando me peguei no escuro, encharcando o travesseiro de lágrimas, com pena de mim mesma e terror absoluto por me sentir a criatura mais sozinha e abandonada do universo. Lembrei de todo o carinho que eu senti, de todos os abraços que recebi, das visitas, das conversas, de todas as pessoas que demonstraram preocupação e apreço por mim quando eu precisava. Deliberadamente tratei de excluir o ex das lembranças, por mais que meu instinto fosse de ficar remoendo o quanto ele reclamou e o quando ele incomodou e o quanto ele foi crítico e negativo com relação ao meu caso, que, por fim, se resolveu mais rápido do que eu imaginava.

 

Eu me envolvi nesse carinho recebido, nessa memória boa, como se recebesse o abraço mais quente e mais cheio de amor de todos. E aí me veio à mente a conversa com a amiga, e as palavras sábias dela encheram o quarto:

 

– Eu não me permito chorar, ela disse. Eu não me permito ter pena de mim mesma, porque a energia que a gente gasta tendo pena de si mesma é a energia necessária pra resolver a vida e continuar seguindo, ela disse.

 

Nessa noite eu decidi que choraria tudo o que precisasse ainda ser chorado, até as lágrimas secarem, até deixar rolar a última tristeza, até a última lembrança secar na pele até ficar o sal. Para, depois que acabasse, nunca mais me permitir sequer deixar os olhos marejados, porque é uma energia que eu preciso para me reconstruir, para me reencontrar. Para continuar respirando, e andando e vivendo. Sobrevivendo, né, mas ainda assim seguindo em frente.

 

Em dias que a tristeza vem como um tsunami e quer me derrubar eu só penso que eu já chorei tudo que podia e que não podia. Penso na voz da minha amiga, me dizendo que ter pena de si mesma é gastar energia, como apostar num cavalo que já morreu antes mesmo da corrida começar. Penso em todo o carinho que recebi, e me enrolo nele como uma bóia, para manter a cabeça por cima da água e continuar respirando.

 

E aí eu sobrevivo mais um dia.

Síndrome do sapo fervido

Na mudança, acabei achando algumas cadernetas e antigos diários, e entre uma e outra caixa me sentava para ler as minhas próprias anotações sobre os acontecimentos da vida.

 

É um hábito que eu tenho desde os treze anos, de escrever em agenda e cadernos sobre o meu dia-a-dia, sobre meus sonhos, minhas ideias, sobre meus desejos e conclusões. É a forma que encontrei de organizar os pensamentos, de avaliar os caminhos traçados e os passos dados. Nas palavras que escrevo no fim do dia (isso quando era adolescente, mais recentemente quando encontro tempo, enquanto espero ser atendida no médico ou algo assim) encontro o sentido do que acontece comigo e de como eu ajo com relação a isso.

 

Aí aproveitei a situação toda, separei os caderninhos (porque agenda é muito, muito século passado, e num caderninho eu posso escrever o quanto eu quiser, sem a obrigação de completar tudo todos os dias) mais recentes, que cobriam os dois últimos anos, para ler. Foi uma experiência intensa, eu devo dizer, várias noites me peguei acordada há poucas horas de ter que acordar revendo os acontecimentos de uma tarde longínqua no parque, quando me diverti muito, ou de uma noite de brigas e discussões, que me levaram a chorar todas as lágrimas de novo.

 

Não, o que eu escrevi nos caderninhos (sim, meus diários) não daria um bom livro. Não interessaria a ninguém saber os mínimos detalhes de um sonho que eu tive e da relação maluca que eu fiz com o que me aconteceu mais tarde naquele dia. Mas me interessou muito rever a situação que estava vivendo de dois anos pra cá.

 

Como um sapo numa panela, eu vinha fervendo aos pouquinhos, subindo grau a grau a temperatura da água, sem sequer me dar conta de que as coisas já não me faziam bem, já não me deixavam feliz. A cada página fui lembrada de mais uma insatisfação, de mais uma discussão absurda, de mais uma cobrança esdrúxula, de mais um patamar de exigência impossível de alcançar.

 

Revivi intensamente esses dois últimos anos, e consegui perceber que as coisas vinham mal, muito mal, e que se pudesse ter visto tudo de fora poderia ter entendido os sinais e compreendido que o casamento que havia começado com paixão, amor, carinho e objetivos em comum estava desmoronando. Uma conclusão triste de chegar, mas um alento: o fim já estava ali, já estava anunciado. Eu é que fui cega, ou ingênua.

 

Ou otimista.

 

Ou apaixonada.

 

Ou medrosa.

 

Ou todas as coisas ao mesmo tempo.

 

O fato é que acabei cozida, aos pouquinhos, como o sapo do título, e vim arrastando essa corrente por mais tempo do que faria se tivesse simplesmente sido jogada na panela com a água já borbulhante. Verdade seja dita: se conhecesse hoje meu atual ex-marido, pensando friamente, acharia ele um babaca. Um chato. Um cara que tem medo de crescer. Um egoista que não sabe ceder nem fazer concessões. E todo mundo sabe que um casamento não é um cabo-de-guerra pra ver quem é que tem mais corda, mas sim uma corrida do saco em dupla, em que os dois têm que pular em sincronia pra ninguém cair. Quer dizer, quase todo mundo: ele não sabe.

 

Mas daí isso já não é mais problema meu, o que ele quer e o que ele sabe. Não sei exatamente se foi ele quem se tornou babaca, ou se eu me tornei mais exigente nesses últimos dois anos. O que eu percebi é que acabei me acomodando, aceitando a água cada vez mais quente sem querer me dar ao trabalho de pular fora, na esperança de que o fogo se desligasse sozinho. Bem, lição aprendida: a gente tem que sair da panela e desligar o fogão a gente mesma, pra não ferver mais até morrer.

A Rehab

Na sexta-feira tive um jantar com vários amigos, e foi muito divertido, e vivi, por alguns instantes, momentos de pura alegria, de estar ali com os amigos, criando momentos felizes e rindo e me divertindo.
Até que, num impulso automático, fui atrás do celular para ligar pra ele, porque já era tarde, e o meu piloto automático me dizia para apenas avisar que estava tudo bem e que eu chegaria tarde em casa.
Parei com o celular na mão.
Meu Deus, o que eu estou fazendo, pensei, mesmo tendo bebido algumas taças de vinho, e devo fazer uma prece diária pelos bons amigos que tenho. Naquele momento, um grande amigo meu viu que eu iria fazer alguma bobagem (ninguém nunca, em momento algum, deveria permitir alguém que bebeu operar seu telefone celular. É uma máquina bem mais potente e perigosa que maquinário pesado ou um ônibus escolar cheio de crianças. Mas isso é história para outro post) e veio conversar comigo. Ele me perguntou o que eu estava fazendo e eu não consegui mentir: disse que estava prestes a ligar para o ex para avisá-lo de que estava tudo bem.
É o hábito, ele disse, é mais forte do que a consciência. Mais forte até do que a dor.
E ele tem razão. Conseguimos escapar por alguns instantes para a sacada, para conversarmos sem que o assunto se tornasse um debate público. Já passei por esses debates públicos com os amigos, logo em seguida que saí de casa, e devo confessar que não foi o momento mais feliz da minha vida. Então, quando ele perguntou se eu não queria ir com ele fumar um cigarro na sacada, aceitei na hora, mesmo não sendo fumante. Era a senha para a conversa privada.
Ele me contou de novo a história de quando ele terminou com a namorada anterior, antes da atual que acabou virando a esposa, e me fez lembrar dos quase seis meses que passou fazendo todo o tipo de bobagem, desde ligar por várias madrugadas seguidas a bater na casa da menina para tirar satisfações com os pais dela, isso depois de se passarem alguns meses do término.
Eu me lembrava, e me lembrava também de tentar abrir os olhos dele, por diversas vezes, para evitar que ele fizesse algo de mais grave com relação a ela. Acompanhava nas festas, cuidava dele enquanto ele se acabava bebendo, alertava as pessoas à volta explicando que ele tinha recém saído de um relacionamento longo e que estava abalado. Ele me lembrou de tudo isso, me agradecendo por ser uma amiga tão atenciosa. Era o mínimo que eu poderia fazer, eu disse, afinal, os amigos servem pra isso, não? Claro, ele respondeu, e pegou no meu braço, olhando bem nos meus olhos e disse:
– E é por isso que eu quero que você esteja bem consciente disso, que você ainda vai fazer muita bobagem. Vai ter recaídas, vai querer ligar, vai acabar ligando, vai ficar olhando nas redes sociais o que aquele desgraçado (uma pequena observação: meus amigos são ótimos, só posso dizer isso!) postar, vai atrás dele no bar em que ele estiver, e vai ficar rondando, atrás de alguma migalha de atenção. Vai encher a cara, vai chorar pra caramba, vai acabar se envolvendo com alguém só pra chamar a atenção dele, vai fazer tudo isso, e talvez mais de uma vez. Mas tudo bem. É assim mesmo. Depois de tanto tempo juntos, a outra pessoa vira um hábito, um vício, um condicionamento do cérebro, uma rotina que é difícil de quebrar de um dia pro outro. Mas você vai ter que ser forte, e para isso precisa, primeiro, ter consciência de tudo que eu acabei de falar.
Já estava com os olhos cheios de lágrima quando ele acabou, e desesperada por um abraço, que chegou logo em seguida.
Aí ele me sacudiu um pouco, para dizer, pronto-passou, e disse, acho melhor a gente voltar pra festa senão o vinho acaba sem a gente.
Sim, voltamos, e eu tenho que confessar que acabei bebendo mais do que estava programado. E que chorei mais do que queria. E que cheguei em casa e vomitei mais do que imaginava que podia, e dormir por mais horas do que tinha planejado, com uma puta dor-de-cabeça maior do que eu podia aguentar. Mas com as palavras do meu querido amigo ainda martelando na minha cabeça.
Realmente, se eu tivesse que definir a minha condição atual seria a de um viciado em recuperação. Rehab absoluta de um amor perdido. Viciada em um relacionamento que não existe mais. E não existe desejo maior do que daquela substância que nos viciou, que alterou completamente a química do nosso cérebro e que agora está fora do alcance das nossas mãos.
Pesquisei algumas coisas na internet (entre uma olhada no facebook e outra) sobre como quebrar vícios e hábitos nocivos, e a maioria dos sites me diz que são necessários no mínimo 30 dias para quebrar a rotina que nos prende a um hábito ruim. Mas tem que ser uma decisão intencional e consciente. O primeiro passo, todos concordam, é ter consciência do hábito ruim, e de como isso afeta a minha vida. Se eu fosse fumante, teria que prestar atenção aos momentos em que decido parar tudo para botar o cigarro na boca e acendê-lo, e quanto tempo eu perco com isso, a cada vez que faço isso, e como eu me sinto, e de que forma as pessoas à minha volta reagem a essa minha atitude.
No meu caso fica mais complicado definir exatamente o que é o meu hábito ruim, pois é tudo relacionado com o ex: eu penso nele, eu lembro dele ao ver um programa de tevê ou ao ouvir uma música, eu corro para as redes sociais para checar se ele alterou seu status ou se adicionou alguma outra mulher ou se comentou qualquer coisa, eu quero falar com ele e ouvir a voz dele, eu quero saber os motivos ou ter respostas para as decisões que ele tomou (mesmo sabendo que é inútil), eu sinto falta do abraço dele, sinto falta do beijo, da presença dele na cama ao meu lado, eu penso nele na hora de cozinhar o jantar (era o momento em que conversávamos sobre nosso dia), eu sinto falta de conversar com alguém sobre o meu dia… e, nossa, a lista é infinita. Ou seja, se ele fosse uma pedra de crack, eu passaria pelo menos 90% do meu dia dividida entre pensar em fumar uma pedra de crack e achar um meio de conseguir a próxima pedra de crack.
Alguém me interna por favor porque reabilitação assim, solta no mundo, vai ser mais difícil do que eu imaginava.
Um dos sites que li apresentava um 3 Easy Steps para quebrar maus hábitos:
1. Faça o hábito de forma consciente
2. Escreva ou registre o que sente e o que pensa para entender o processo
3. Substitua o hábito por alguma ação menos nociva para si.
Parece fácil, né. Parece. Mas se eu conseguir fazer isso, sem ter recaídas, por 30 dias, um outro site me disse, eu consigo os próximos meses de forma mais tranquila. O negócio é quebrar a rotina, desacostumar, agir de outra maneira, substituir por qualquer outra distração, e se manter firme nisso até que a química do cérebro reaja e se altere para a nova realidade. Os primeiros 30 dias são os mais importantes, e é por isso que normalmente o tratamento de reabilitação demora, em geral, 28 dias (tem até um filme sobre isso, com a Sandra Bullock).
Um outro site (este link aqui) me deu várias dicas sobre como agir durante o processo. Uma das dicas, que eu anotei no celular para me lembrar de tempos em tempo, é a do “Mas”. Funciona assim, sempre que eu perceber que estou tendo pensamentos negativos, ou, no meu caso, pensamentos voltados para o ex, serei obrigada dizer a mim mesma “é, mas…” e completar com algum elogio ou comentário sobre algo positivo que não esteja relacionado com o ex.
Assim: estou aqui novamente escrevendo um post todo triste porque não consigo me desligar da saudade dele MAS naquela sexta-feira não liguei, não mandei mensagem, e não deixei de me divertir com meus amigos (apesar das recaídas do pensamento, acabei desligando o telefone e não fazendo nenhuma bobagem).
Outra dica é manter a simplicidade. A vida já é muito complicada, então quando mais simples for o objetivo, quanto mais simples forem os substitutos do hábito ruim, mais fácil vai ser de serem mantidos. Dentro dessa decisão de simplicidade, o negócio é manter o foco e mudar uma coisa de cada vez. A cada 30 dias, um hábito ruim a ser mudado por vez. Se tiver uma recaída, mantenho o objetivo por mais 30 dias. E quantos 30 dias forem necessários até me desligar completamente.
De acordo com o meu sábio amigo, eu ainda tenho uma janela de cinco meses em que corro o risco de fazer várias bobagens por aí. Eu já tomei o primeiro passo para evitar que o estrago seja grande, que é estar consciente dos meus atos. De qualquer forma, estou avisando os amigos mais próximos para ficarem atentos: se eu começar a agir feito uma junkie procurando drogas, eles estão autorizados a tomar conta do meu celular e me amarrar, se for preciso, para me manter longe do perigo.

Fazendo a mudança

Hoje foi o dia em que terminei de juntar meus pedaços. Ainda não sei o que fazer com eles, mas agora estão todos organizados, alguns ainda encaixotados, na minha nova – temporária – casa.
 
É incrível o quanto de lixo, e papel, e tralha que se junta e que a gente vai acumulando, acumulando, acumulando. A ponto de se perder no meio de tudo. Comigo foi assim, pelo menos. Não sei bem quando o processo começou, mas sei que ele terminou. Mais especificamente, começou a terminar no domingo (dia da mudança das coisas) e terminou hoje.
 
Joguei tanta coisa fora, mas tanta que nem sei mais. Lá no meio do caminho abri uma revista (Vida Simples) com uma matéria sobre jogar coisas fora, falando sobre os motivos de nos apegarmos a objetos, por uma questão meramente emocional. A gente contrói uma narrativa com nossos objetos, e a presença deles nos ajuda a lembrar quem somos, de onde viemos, e as experiências que acumulamos. Eu li isso lá no domingo, quando ainda estava tateando pelo caminho, sem saber exatamente o que empacotar primeiro. Tem um comentário da jornalista, a respeito de um livro que fala sobre o processo de arrumação, de desapego de objetos, etc, que ensina que devemos jogar fora 50 coisas. E não vale juntar um monte de canetas velhas, porque todas elas contam como um objeto. Não importa o número de batons usados, todos eles contam como apenas um.
 
Aí, bem, dada a pressão psicológica do ex (que precisa do espaço, e que queria me ver longe dali o mais rápido possível), comecei no processo todo, e ao longo do caminho fui fazendo a contagem de coisas que estavam sendo jogadas fora. Canetas, lápis, rímel, batom, esmalte, porta-retratos, estátua de anjo, latas decorativas, blocos usados pela metade, disquetes, revistas, castiçais, rechaud com aromatizador, brinquedinhos que costumávamos dar um ao outro quando começamos a namorar (juntei todos numa caixa de sapato, fechei a caixa sem nem olhar pra trás), sapatos e chinelos, cachecóis, calcinhas, meias, umas bolsas (que me levaram a pensar o que diabos eu estava pensando), bilhetes de cinema de filmes que assistimos juntos, fones de ouvido, um celular velho, pilhas (que vão para um lixo separado), um carregador de baterias, livros e apostilas do curso que larguei no meio, sacolas, dvds, brincos, pulseiras, prendedores de cabelo, perfumes, desodorante, shampoo pela metade (não vou deixar meu shampoo cheiroso pra ele usar ou, ainda pior, pra uma mulher qualquer chegar ali e usar), uma caixa de barra de cereal velho, um guarda-chuva, um massageador de costas, um travesseiro que já estava se desfazendo, óculos de sol (vários), uma caneca rachada, estojo de pano, uma garrafa térmica, camisetas velhas, e tudo isso ainda não chega nos 50 objetos. Ufa.
 
A reportagem ficava martelando na minha cabeça o tempo todo, eu queria chegar aos 50 objetos (seria uma vitória pessoal no meio de um fracasso gigantesco do casamento), e pensava também nos motivos que tinha para ter guardado aquilo por tanto tempo (mais de seis meses, certamente, de outra forma teria juntado nas malas que fiz quando fui dormir fora de casa). Talvez a tristeza do grande fracasso tenha me deixado com uma boa perspectiva sobre esses pequenos fracassos que eu via passar pelos meus olhos a cada objeto que pegava. O livro de yoga, quando eu estava super empolgada com as aulas e determinada mas que eu nunca cheguei a ler e praticar. O tocador de mp3 pra quando decidi voltar a correr (porque o ex havia dito que me acompanharia) e que depois do início do inverno nunca mais foi usado. Os objetos de decoração que ficavam em caixas, porque eu decidi ceder quanto aos enfeites que usaríamos na nossa casa que era dele. Esse ponto-de-vista me ajudou a por tudo em grandes sacolas de lixo sem pestanejar. Ok, o fato de eu pensar "como é que vou carregar isso?" somado ao pânico de me perguntar constantemente "onde é que eu vou guardar isso nos próximos meses?" também ajudou a não me frear no ímpeto de jogar tudo fora.
 
E aí, quatro dias depois, devo confessar que me sinto mais livre. Com menos bolas de ferro amarradas nos meus tornozelos. Com mais espaço pra respirar.
 
O meu mural eu trouxe comigo praticamente intacto. E quando o instalei na parede, a primeira coisa que fiz foi retirar todas as fotos e todos os tickets de shows em que fomos. Eu tinha um painel da nossa história, com o ingresso do show em que demos o primeiro beijo, a foto do nosso primeiro fim-de-semana juntos e o primeiro brinde de ano novo que fizemos. Em todas as fotos eu sempre aparecia feliz, sorridente. Enquanto tirava, uma a uma, só pensava, "onde é que essa pessoa foi parar?" E, mais importante: "como é que eu me torno essa pessoa de volta?"
 
Acho que o primeiro passo, e talvez o mais importante, eu tenha dado: de deixar para trás. De desapegar. De jogar fora, ou doar, ou simplesmente passar adiante. Mesmo que tenha levado quatro dias, foi importante e necessário.
 
Em algum momento eu sei que vou encontrar de novo a pessoa feliz e sorridente das fotos. Para, quem sabe, tirar novas fotos de alegria e momentos a serem lembrados. Por enquanto, enchi o mural com postais que os amigos me enviaram, e postais que eu comprei nas viagens que fiz sozinha. Não foram muitas, mas estão lá, para que eu olhe todos os dias e lembre que eu posso ser uma só, e ainda me divertir.

Spring all over me

Não sei se foi a volta do sol depois de semanas de frio e chuva e cinza, ou algum alinhamento dos astros que favoreceu a mudança interna em mim, mas algo fez um click que há tempos não havia.
 
Como quando a gente veste uma roupa muito pesada, um sapato apertado, qualquer coisa que cause desconforto, até chegar em casa e despir-se, jogar o sapato longe, e sentir o alívio da própria pele de novo, alinhar a coluna, espreguiçar-se e respirar. É uma sensação deliciosa, avassalaradora: depois de muito e muito tempo embaixo d'água poder vir à superficíe e encher de ar o pulmão, voltar à vida.
 
E aí tudo é novo, tudo é descoberta, re-descoberta, aprendizado.
 
Ontem tive vários momentos de epifania. Almocei com uma amiga querida, que me disse várias coisas sobre meu antigo relacionamento, com a firmeza que só a verdade carrega, e com a delicadeza que só a amizade leva. E nem eram grandes novidades assim, o que ela me disse, mas desta vez fizeram muito sentido. E fizeram ainda mais sentido ao voltar pra casa, quando o sol do fim de tarde batia no meu rosto e me encheu de esperança quanto ao meu futuro.
 
Sim, vou fazer uso de um grande clichê, mas não seria um clichê se não fosse revestido de verdade: é com a chuva que a nuvem negra esvazia, e o sol só pode aparecer depois que ela se vai. O sol, o calor, duas crianças de uniforme correndo livremente pela calçada, nuvens tão finas e inofensivas adornando o céu em forma de raios, um jardim bem cuidado, e eu ali, retornando à vida. Retomando posse da minha vida, sentindo-me absolutamente livre e contente, satisfeita com essa onda de liberdade.
 
Olha, que bom viver.
 
Não sei por quanto tempo esse sol intenso de primavera vai brilhar, nem até quando esse inverno pessoal vai durar. Mas o degelo já é uma realidade, e talvez seja mesmo a hora de aposentar a tristeza.

A dor

O que fazer com ela, meu deus?
 
Como conviver com essa presença tão firme, tão abrangente, tão invasiva, que se torna a dor?
 
Ela chega com uma mala, uma mochila, e se muda para sua casa, toma conta da sua vida. Vira sua sombra.
 
A dor está lá quando você acorda, e invade o banheiro enquanto você toma banho. Ela observa silenciosa enquanto você toma café, ou escolhe a roupa. De repente, até colocar uma maquiagem no rosto parece uma tarefa árdua, porque lá está a dor olhando por cima dos seus ombros, no reflexo do espelho, e levanta o indicador pedindo sua atenção.
 
E você dá atenção, claro. Onde antes havia uma companhia humana, onde antes havia calor e conversa, e riso, e choro, e até mesmo uma opinião diferente da sua, logo em seguida houve um momento de vazio, e foi aí nesse vácuo que a dor entrou e fixou residência. E não é a mesma coisa que você tinha antes, você pensa, secretamente, mas pelo menos é alguma coisa. Porque antes parecia que nada poderia ser pior que o vazio, e a dor estabeleceu-se tão dócil que lhe parece melhor ter alguma coisa do que não ter nada.
 
Mas ela não permanece dócil, e começa a agir muito rapidamente. Ela invade todos os espaços, e descolore todas as cores, e escurece todas as janelas a ponto de não entrar mais nenhum sol na sua vida. As plantas morrem, obviamente, e a energia já não chega mais nem às lâmpadas, nem à geladeira. Nada mais funciona. E num determinado momento, quando ela já invadiu todos os ambientes e revirou todos os armários, ela encontra a sua cama. E passa a dormir ao seu lado, e a passar os braços ao redor do seu peito, a ponto de sufocar. São pesados os braços da dor, e é com as mãos firmes e fortes que ela finca seus dedos em seu peito e o rasga, estraçalha sua carne, e apoia-se em seus ombros, e você passa a arrastá-la por onde quer que for.
 
A cicatriz fica aberta por um tempo infinito, eu sei. Estou sentindo isso agora. E a dor pesa demais, torna-se doloroso e pesado existir.
 
Como faz para a dor ir embora? Como faz para que ela tire as unhas da sua carne para que a ferida possa finalmente se fechar?
 
Porque é preciso que ela vá embora, senão você não vai sobreviver. É preciso que ela ao menos deixe os seus ombros, para que você possa se locomover de novo. Possa esticar a espinha e descansar o corpo.
 
Porque a dor é cansativa, e chega uma hora em que é preferível ficar sozinha, no vazio, do que com ela. A visita inconveniente que quer mais uma cerveja e quer mais uma piada quando você só consegue bocejar e deseja dormir.
 
Qual é a vassoura para por atrás da porta para que a dor vá embora? E por quanto tempo mais será preciso conviver com ela, até que ela se canse de mim e se vá?